segunda-feira, 15 de junho de 2009

O COELHO QUE SE DISTRAIU



Lá está ele divertido, em pequenas correrias após a refeição da manhã, dirigindo-se para o esconderijo sob a protecção de um silvado. São seis horas da manhã. A mais de hora e meia de surgir na linha do horizonte, o Sol lança já os seus raios, iluminando a Terra. Antes que os humanos saiam das suas tocas e invadam o silêncio com os ruídos das suas máquinas, o coelho faz a sua surtida matinal à minha horta. Com os últimos clarões do fim do dia, ele regressará para a segunda refeição. Repetirá o mesmo programa de pequenas correrias intervaladas com paragens para erguer a cabeça, espetar as orelhas e perscrutar eventuais perigos. Não fora conhecer a sua dieta alimentar que inclui muita cenoura, diria que não vê bem ao longe. Afinal eu é que não consigo ver se ele trás óculos. Uma certeza eu tenho, a de que ele está sozinho naquela faixa de terreno matoso, prestes a ser ocupado por arruamentos e casas. Quando aquele espaço, então livre da ocupação imobiliária, era vinte vezes superior em superfície, a comunidade de laporídeos era florescente. Para além de os ver, ficavam também as provas nas minhas culturas hortícolas. O homem foi avançando sem pedir licença e os coelhos foram diminuindo. Este ou esta sobrevivente, já não tem a possibilidade de acasalar e aumentar a sua prole. Também já não tem a opção de ser comido por uma raposa. Está cercado de retroescavadoras que todos os dias revolvem mais uma porção de mato, ali mesmo a metros da sua
loca. Como serão as horas do dia para este pobre animal? Daqui a duas horas começará o barulho infernal para quem tem uma audição privilegiada, e sentirá o chão estremecer. Esta situação pode acontecer a quem passa o dia alapado. Quando se apercebe, o mundo mudou à sua volta sem que desse por isso. Se tivesse escolhido uma igreja em vez do silvado, não teria que passar por isto, pois lá os séculos passam e nada muda. Quantos dias ainda durará depois de lhe barrarem o acesso à horta? Como será o seu fim? Acabará por enlouquecer e deambular pelos espaços então alcatroados à procura de matar a fome com os desperdícios dos humanos, até ser esmagado por uma qualquer máquina sem sentimentos ou devorado por um cão vadio.
Aqui está a fatalidade da existência, no encerramento do deambular pragmático do quotidiano.
É um bom desfecho, não é? O trabalho que me deu arranjar uma história e tirar um coelho da cartola, para poder encaixar esta “frase lapidar”… que não encontrava abrigo em lugar nenhum e já andava inquieta por se mostrar. Manias de frases com pouca modéstia.


Ezequiel Vintém

13 comentários:

nelson disse...

Obrigado Ezequiel Vintém, velho companheiro de outras caçadas pelos arrabaldes de A. Nova, onde nem os gambuzinos escapavam. Estive mesmo para encerrar a porta, por falta de clientela!...Louvo a profundidade e oportunidade do teu escrito, em contraponto com as meditações a que, de quando em vez, o Purificação nos sujeita.
Aparece sempre!

Anónimo disse...

Nelson, eu faço o que posso que é pouco, mas de boa vontade. Afinal estamos todos no mesmo barco, ou será na mesma bicicleta?
Certo dia dei por mim a pensar que um blog é semelhante a uma bicicleta. Se o ciclista deixa de pedalar, ela perde velocidade e acaba por cair. Os que vêem à estrada para aplaudir os ciclistas, também não voltarão se não houver ciclistas. Eu sou apenas um “aguadeiro” que se esforça por desempenhar a preceito a tarefa de abastecer as vedetas, abrir-lhes o caminho e dar-lhes todas as condições para ganharem a corrida. Porque é a eles que os assistentes querem ver. São eles que sobem as grandes montanhas e fazem os grandes “spints” que põem em delírio os assistentes.
Ezequiel Vintém

Fernando disse...

Meu caro Ezequiel Vintém:
Realmente a última frase vale o seu peso em diamantes. “ Aqui está a fatalidade da existência, no encerramento do deambular pragmático do quotidiano”.
Quem diz melhor. O seminário de Aldeia Nova (nunca lhe conhecí outro nome) deu-nos bases sólidas. No convento dos dominicanos de Fátima ( assim se chamava durante os cinco anos que lá estive) tivemos bons professores de filosofia e teologia que nos ensinaram a reflectir e foi com eles que aprendemos a aprender. O Ezequiel Vintém dá-nos disto uma prova sem apelo, com este texto que é uma verdadeira pérola. No entanto não estou de acordo com uma frase:
“Se tivesse escolhido uma igreja em vez do silvado, não teria que passar por isto, pois lá os séculos passam e nada muda”.
A meu ver a igreja tem mudado muito e cada vez vai para pior. Mudou no século quarto com Constantino e aí começou a sua infidelidade com relação ao Evangelho.
Recusou a mudança ou evolução proposta no século XVI por teólogos ilustres que hoje chamamos de protestantes.
Tentou uma mudança no século XX com o Vaticano II, mas estamos de novo a voltar à cepa torta.
Ao escrever dou-me conta que finalmente tens razão! A igreja só mudou uma vez e foi para renegar a doutrina e a dinâmica do seu fundador. Falo da igreja enquanto instituição. Felizmente que milhares de mulheres e de homens, de todos os tempos e lugares, conseguiram viver da força do Evangelho “malgré l’ église”.
Por favor não tenhais conta deste comentário para continuardes a discorrer sobre o texto do
E. Vintém, eu estou completamente fora do contexto. Um abraço, Fernando.

Antero disse...

Caro Ezequiel Vintém,

A tua humanidade e bonomia, acaba por deixar-nos condoídos com o coelho e o triste futuro que lhe auguras...
Com tamanho sentimento e bons fundos, consegues até dar cabo dos pensamentos mais elevados e da imaginação mais fértil, quando se fala de coelhos e lebres!
Um arroz de coelho ou lebre ainda fumegante e vaporoso, por exemplo.
Mas quem conseguiria imaginar esse ladino coelho destinado a tão comezinhos fins!?
Imagino mais depressa que a sua solidão acabará, quando tiver de procurar outra horta. Há-de encontrar outros e outras e quem sabe, passar à tua horta de cartola e em risota... antes do nascer do sol ou logo que este se ponha, não vá o Diabo tecê-las.

Antero Monteiro


P.S.- A pedido do próprio vou deixar sem comentário o tema lateral que o Fernando aborda. Mas fica em agenda para uma leve abordagem (porque apenas sei tratar desses temas pela rama, por minha falta de ciência e de profundidade teológica)noutra oportunidade.

Fernando disse...

Meu caro Anrero,
Olha que a falsa humildade é um pecado bem maior que o orgulho, dixit o Fernando.
Foi uma frase tua (tenho quase a certeza, mas agora não vou procurar) que mais me fez reflectir e dáà pano p'ra mangas...
Dizias + ou – o segunte: na Igraja a mulher só é igual ao homem quando consegue ir para os Altares!... Quer dizer que a Igreja não usa de misoginia ou discriminção com os mortos? É um ponto positivo que merece reflecção! Não ficas pela rama não senhor, vais mesmo à raiz. Um abraço, Fernando.

Zé Celestino disse...

Regressado de um fim de semana alargado/antecipado, acabo de fazer uma visita geral ao blog..

Considero muito oportuna e cheia de simbolismo a brilhante intervenção do Alexandrino,cujas qualidades literárias têm genese em Aldeia Nova...

Por isso, quem vier dizer mal de Aldeia Nova, leva... como diria o coelhómetro, a propósito dos que dizem mal do PS...

Quanto ao roedor coelho distraído só tem uma safa: fugir das máquinas destruidoras do seu habitat e dar largas às suas grandes qualidades proliferadoras...

Infelizmente, o homem subestima os direitos dos seus melhores amigos, os animais que Noé protegeu na famosa Arca...

Qualquer dia, os lisboetas não sabem o que é um gafanhoto... nem sabem distinguir um grilo de uma grila..

Aqui está um tema para o Isidro aprofundar com recurso à NET...

A propósito, agradeço ao Isidro as referências cronológicas do estatuto jurídico-social da mulher na nossa sociedade civil...

No que diz respeito ao estatuto jurídico-canónico(?) da mesma, louvo-me na brihante intervenção da Geneviéve e não tenho dúvidas de que a curto prazo a Igreja reconhecerá à mulher os mesmos direitos e deveres que reconhece ao homem...

Os Estados de Direito Democrático já consagraram nas sua leis fundamentais o princípio da não discrinação em razão do sexo...

No meu meio ambiente laboral tenho acompanhado muitos concursos para o provimento de categorias profissionais, onde as mulheres obtêm aprovação para as mais variadas áreas funcionais : mecânicas de avião, controladoras de tráfego e «pilotas», como, por graça,nos referimos às nossas trabalhadoras com a C/P de Piloto...

E fiquem sabendo que já foram feitos alguns voos com tripulações integradas exclusivamente por «comamdantas e pilotas» e «Comissárias de Bordo»...

Dos respectivos relatórios, consta que esses voos se realizaram com grande proficiência técnica, com descolagens e aterragens muito perfeitas...

A BON ENTENDEUR...

Abraço a todos

Zé Celestino

Armando disse...

Vê lá bem Celestino. Não estarás ainda encadeado com o sol da praia?
Eu também vim de uma semana de férias e fico agradado com as intervenções que vão surgindo no nosso blog. Mas não posso ser responsabilizado, para o bem e para o mal pelos escritos alheios. Ao Ezequiel o que é do Vintém...
A. Alexandrino

Anónimo disse...

...E veio o Ezequiel com a sua prosa laporínea quebrar o que é a substância do blog: as saudosas referências ao nosso passado comum, aos nossos laços. Não consigo descortinar mas deve andar neste texto do Ezequiel uma mensagem política disfarçada. Aquela referência à igreja como habitáculo de coelhos...
Bom, mas os outros dão-lhe os parabéns (sinceros?)
António da Purificação

Zé Celestino disse...

Caros visitantes do Blog,

Penitenciando-me pelo lapso em que incorri no meu último comentário, e com formais desculpas ao Alexandrino, peço a todos que onde está escrito Alexandrino considerem escrito Ezequiel Vintém.

Abraço

Zé Celestino

Armando disse...

A virtude que mais reguei e adubei em Aldeia Nova e Fátima foi a caridade. Portanto por aí estava bem escudado. Só que as minhas costas não me permitem aguentar com as bengaladas que caem como meteoritos sobre o Ezequiel Vintém. Por vezes também leva com louros pela cabeça a baixo. Outra sevícia que minha calvície repulsa. Ele representa uma pincelada de exotismo no mar das preocupações teológico-filosófico a que nos atemos habitualmente. Tem o senão de andar sempre de aguilhão em riste, hábito que lhe vem das lides da lavoura.
A. Alexandrino

Antero disse...

Caro Fernando,

Essa tirada "na Igreja a mulher só é igual ao homem quando consegue ir para os Altares!" bem gostaria de a subscrever, mas não é minha.`

Devo dizer-te que também não é por falsa humildade que reconheço as minhas limitações do ponto de vista teológico, pois gostaria de ter aprofundado argumentação e conhecimento nessa área. Mas desde que saí de Aldeia Nova as oportunidades foram poucas.
Têm passado por este blog textos bem interessantes e muitas ideias bem aferidas que proporcionam alguma partilha de conhecimentos que muito me agradam.
Um abraço.
Antero Monteiro

Anónimo disse...

A propósito das intervenções e comentários peço desculpa por as minhas intervenções não reflectirem muita da complexidade ,elegãncia e boa educação do muito que aqui vai acontecendo..por isso não me sinto à altura com os meus comentários e não estou bem a par das muitas subtilezas que aqui são apresentadas...peço desculpa !..também não percebo porque não aparece ninguém do meu tempo..acho que é uma caracteristica mais dessa geração fracturante que apanhou o 25 Abril numa idade critica! E eu próprio passar por aqui é mesmo uma coisa extraordinária (e que se deve a qualquer coisa como uma reconversão)..A propósito da Igre ja, tenho como sua definição qualquer coisa como seja a comunidade dos crentes e do Estar- em-Igreja qualquer coisa como estar em comunhão (os católicos a que pergunto isso não sabem o que é estar em Igreja )..mas ser a Igreja sempre igual e eu acho que é próprio..com mais ou menos roupagens : o grosso da comunidade tem as suas manifestações de fé mas mais ou menos são básicos na compreensão da sua religião ..Os que ficam dentro muros ou nas paróquias são em grande parte administrativos e burocráticos ..criativos há menos e santos ainda menos porventura..quanto à verdade do que seja o cristianismo é comum afirmar-se que ela esteve com os primeiros cristãos ( em alguns sites ,veja-se Lepanto , tudo é dito para afirmar que ela esteve com os medievais ) ..eu por mim acho que a verdade desse cristianismo-e que tem a ver com a compreensão- só aparecerá com os ultimos cristãos e que se não vieram, ainda estarão para vir--os ultimos serão mais verdadeiros porque melhor compreenderão e praticarão ..e O caminho desses cristãos não será muito mais que uma ética de aproximação virtuosa e exemplar , um eterno retorno a um centro e esse centro é Cristo

José Carlos Amado

Anónimo disse...

Não sei quem é o José Carlos mas é tão consolador ver, cada vez mais, aparecerem no blog belas reflexões sobre religião e a Santa Igreja. Felizmente que uma certa corrente de progressismo e de indeferentismo, para não dizer de descrença, está em debandada destas páginas.
António da Purificação