À quinta-feira,
era feriado. E que bem sabia esta interrupção lectiva a meio da semana!... O
dia começava, invariavelmente, como os outros. Depois do pequeno-almoço, havia
uma sessão de estudo de cerca de hora e meia e depois um intervalo prolongado
de uma hora. De seguida mais estudo até à hora de almoço. De tarde, os
estorninhos saíam da gaiola, e lá íamos, alternadamente, ou para o campo de
futebol do Olival ou explorar montes e terras vizinhas, Urqueira, Cercal,
Gondomaria, Barrocaria, Cavadinha, que
era a terra do Manuel Ribeiro, o Boa, e do Leonel Castelão Ribeiro que, não sei
por que modas, a gente chamava de Fenício, facto que ele ainda hoje recorda com
galhardia. Na Cavadinha, havia uma madonna
que o Leonel dizia que tinha sido mestre-escola, e que de cada vez que nós
passávamos à sua porta, ela entoava do alto da sua varanda uma canção cuja letra
aqui reproduzo conservando ainda na minha memória a melodia:
Alerta, Alerta
Olé quem passa
São os soldados de Cristo Rei…
E lá acenávamos nós respeitosamente à
matrona, que assim nos saudava de forma tão peculiar.
Uma
vez em cada trimestre, se a memória não me atraiçoa, havia o chamado ‘passeio
grande’. Era um dia inteiro de passeio, que nos levava a destinos mais
distantes como Memória, Espite, Estreito, Freixianda, Rio de Couros e tantas
outras terras que nós íamos descobrindo. Em Rio de Couros, marcávamos encontro
com o Rio Nabão que ali deslizava mansamente. Por volta do meio dia, chegava a
carrinha Volkswagen azul com o almoço e nós recebíamo-la festivamente, sem
foguetes nem bandeiras, mas com um apetite devorador.
Os passeios das
quintas-feiras e domingos eram segregacionistas, na medida em que éramos
separados, tendo em vista não o escalão etário mas sim o ano de escolaridade:
primeiro e segundo anos para um lado, terceiro quarto e quinto para outro.
Tínhamos sempre a companhia de um perfeito ou de um padre, que não deixava que
ninguém se atrasasse, não fosse o diabo tentar as almas que andavam na
aprendizagem do sacerdócio. Recordo alguns dos perfeitos como o Zé Cerdeira que,
não sei por que motivo tinha a acunha de Zé Polaco e era irmão do director; o
Sr. Moisés oriundo da zona da Batalha e que era aluno do seminário maior
diocesano, já tonsurado e que nunca largava a sua batina preta. Estaria
porventura a estagiar para receber as ordens diaconais, mas também não se fez
velho em Aldeia Nova. Do percurso dele nada mais soube e só muito recentemente
tomei conhecimento que o Sr. Moisés que eu conheci, é afinal o conceituado
sociólogo Moisés do Espírito Santo, que tantas vezes vi no pequeno ecrã, com os
poucos cabelos que lhe restavam descaídos em repas pela cabeça abaixo, brancos,
enrolados e desalinhados, dar largas à sua sabedoria, emitir o seu parecer
sobre a organização social deste país desorganizado. O prefeito Moisés era um
homem criativo, simples, bonacheirão, tolerante e de quem se gostava. Talvez
pelo Natal de 1956 o Sr. Moisés entendeu que poderíamos fazer um presépio a
partir de figuras por nós concebidas, mas com a sua supervisão. Daquela fábrica
de cerâmica que havia próximo do campo de futebol do Olival, carregámos um bom
pedaço de barro que transportámos até à ‘Velha Casa’. Sob a sua orientação
moldámos anjos, santos, reis magos e as divindades do presépio. Criámos casas
ao estilo árabe e tudo cozemos num forno que havia na quinta, junto aos
currais. E construímos o presépio. Sessenta e piques anos depois, com a devida
vénia, ficam os meus respeitos ao senhor professor doutor Moisés do Espírito
Santo!
Outra figura
emblemática dos nossos passeios era o padre Simonin. De nacionalidade francesa,
alta estatura e com a cabeça desprovida de protecção capilar, como agora se
usa, o seu sotaque afrancesado era muitas vezes motivo de chacota. Só o
temíamos nos passeios, pois a sua passada larga, obrigava-nos a algumas
correrias para o podermos acompanhar. Mesmo assim, era para nós o mais
aceitável, dada a sua bonomia e inquestionável tolerância. Certa vez,
porventura no meu terceiro ano, aconteceu entre mim e ele uma situação bastante
inócua, mas que foi motivo para gargalhada que deixou o grande Simonin algo
incomodado.
Nas horas
dedicadas ao estudo, a cambada era distribuída como nos passeios: primeiro e
segundo para um lado, terceiro, quarto e quinto para outro, que é como quem
diz, primeiro e segundo no salão de baixo, terceiro, quarto e quinto no salão
de cima. Como a cena em apreço tivesse acontecido no salão de cima, daí o facto
de a posicionar no meu terceiro ou talvez quarto ano. Era no estudo da noite e
por isso tínhamos o zumbido dos dois petromax
por companhia. A certa altura eu e outro companheiro desenrolávamos amena
cavaqueira e eu fui o alvo da repreensão do gigante francês, que com o seu
característico sotaque sentenciou alto e bom som:
-Nersun! Vite o ruido!... que eu traduzi
para português corrente –Nelson, evite o
ruído!...Esta chamada de atenção mereceu uma gargalhada geral de escape,
que não agradou ao fr. Simonin. Meio século depois, o Eduardo Bento haveria de
recordar o facto, pensando ele que a reprimenda era para mim e para o Vitorino.
E porque é que
nós alcunhávamos de “Cabilhas” ao Fr. Simonin? – Confesso que não sei. Mas era,
na verdade, um bom gigante!...