Frei Bento
Domingues, O.P.
1.
Já fui solicitado, várias vezes, para acompanhar peregrinações à Terra Santa.
Nunca me foi possível e nunca fiquei com muita pena. Não me desagradaria ter os
olhos povoados com esses lugares. Até teria algumas vantagens para ler os
Evangelhos e conhecer a geografia das viagens missionárias de S. Paulo. Não
tenho nada contra o chamado ”turismo religioso” e os seus negócios. Negócio é
negócio e pode dar trabalho honesto a muita gente.
Confesso
que a minha branda alergia resulta da própria leitura dos atrevidos textos do
Novo Testamento acerca do culto, dos seus tempos e lugares sacralizados.
No passado
Domingo, S. João não deixou escapar absolutamente nada[i].
Desvalorizou, de forma radical, a importância dos templos: o de Jerusalém, dos
judeus, e o de Garizim, dos samaritanos. A água do poço do patriarca Jacob não
tem mais virtudes do que qualquer outra água. A razão teológica que Jesus
apresenta não deixa margem para qualquer deriva: “Está a chegar a hora – e é
agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade.
São estes adoradores que o Pai procura. Deus é espírito. Os que o adoram têm de
o adorar em espírito e verdade”.
A samaritana
ficou muito espantada com esta desenvoltura de um judeu que se sentia bem a
conversar com ela, a herética e, aparentemente, sem se importar muito com a sua
abundância de maridos. Percebeu que estava ali alguém que via o mundo às
avessas. Para ela era um profeta de tempos novos.
Ficou
completamente seduzida. Deixou o seu cântaro e foi à cidade dizer às pessoas:
vinde ver um homem que me disse tudo quanto eu fiz! Não será ele o Cristo?
Saíram da cidade e foram confirmar.
Aqui, o
narrador introduz um parêntesis. Os discípulos, que tinham ido comprar
alimentos, não perceberam nada do que se estava a passar e não viram com bons
olhos o Mestre a conversar, a sós, com uma mulher e, para mais, samaritana. A
situação era duvidosa para o bom nome de ambos.
O Mestre,
muito cansado, não mostrou interesse nenhum pelo almoço, o que levantou
suspeitas aos discípulos. De facto, Cristo já estava noutro horizonte. Naquele
encontro que os discípulos não perceberam, viu a revelação de um Deus que não é
só para um povo escolhido: levantai os
olhos e vede os campos como já estão maduros para a ceifa e os discípulos
iriam ter a alegria de colher o que outros semearam.
Para os
costumes da época, era estranho que os samaritanos se deixassem conduzir por
uma mulher. Ficaram tão entusiasmados com o encontro que ela lhes proporcionou
que pediram ao hóspede para ficar com eles. No final desabafaram com a
samaritana: “ já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios
ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo”.
É a
primeira vez que esta declaração aparece no Evangelho de João. Nós somos
herdeiros de uma fórmula que, por mau uso de séculos, parece gasta. No entanto,
foi na Samaria que Jesus saltou o muro que separa os salvos dos perdidos, os
bons dos maus, os de Deus e os do maligno. De uma fronteira de inimizade, entre
judeus e samaritanos, fez um só mundo, salvo do ódio e do desprezo.
2. Para este Domingo foi escolhida a
narrativa da cura de um cego de nascença[ii].
É uma controvérsia muito longa, muito estúpida e muito cega. Tentaremos,
depois, mostrar a sua actualidade. Antes, importa ver o ridículo. Jesus, ao
passar, viu um homem cego de nascença. Os seus discípulos reproduziram a
ignorância generalizada: Rabi, quem
pecou, ele ou os seus pais para que nascesse cego? Jesus não tinha resposta
para uma questão idiota. Tudo era visto como prémio ou castigo. Quem estava
bem, era amado de Deus, quem estava mal é porque tinha feito algum pecado, o
próprio ou alguém da sua família. Não havia lugar para qualquer interrogação
para além desta moral.
Jesus não
entrou nessa teologia barata, pois, se existe um mal, só damos glória a Deus
tentando libertar a pessoa dessa situação. Foi o que Jesus fez de forma pouco
ortodoxa, quanto ao método e quanto ao dia. O método não foi discutido. O azar
foi o ter posto a ver um cego de nascença ao Sábado! Não era a primeira vez que Jesus se metia em sarilhos por
violar esse dia sacratíssimo, reservado à glória de Deus, mesmo contra a
felicidade humana. Que o homem continuasse cego, o problema era dele, azar,
agora violar o Sábado era cometer um crime contra a melhor das religiões, que
até colocava Deus a descansar ao Sábado!
Deixemos
aos judeus lidar, à vontade, com esses preceitos religiosos. Seria lastimável
pretender imiscuir-se nas suas convicções. No Evangelho de S. João esses
preceitos, como acontece nesta narrativa, não servem a libertação humana. Jesus
disse, de muitas maneiras e, por vezes, à letra e ao espírito, que o Sábado é
para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. Era a derrota do
fundamentalismo religioso, não só do seu tempo, mas de todos os tempos e para
todos os tempos, seja qual for a religião, sejam quais forem as suas mediações.
Cego será quem não quiser ver isto.
3. Porque teimar em ler na missa uma discussão tão azeda
sobre a cegueira que pode invadir o culto? É porque esta questão é também uma
questão da Igreja. Actualíssima. Andam por aí algumas pessoas e movimentos a
dizer que este Papa, por querer alterar preceitos desumanos, coloridos de falsa
religião, é herético. O Direito Canónico não pode pretender que os fiéis
existam para o observar. É o Direito Canónico para os fiéis ou são os fiéis
para o Direito Canónico?
Isto não
acontece só na Igreja e nas religiões. Ao longo dos séculos, foram realizadas
grandiosas revoluções científicas, técnicas e políticas. As políticas e todas
as outras esqueceram que lhes incumbe a vocação e o dever de usar os seus
poderes, não para dominar, mas para servir a humanização da vida de todos.
Quando estão ao serviço de desígnios de dominação, perdem-nos, não nos
salvam.
26.03.2017