terça-feira, 22 de abril de 2025

O Pontificado do Papa Francisco - Artigo de Frei Bento Domingues O.P.

 Frei Bento Domingues O.P. (1934-)

O Pontificado do Papa Francisco, Público Lx, 21/04/2025 

www.publico.pt/2025/04/21/opiniao/opiniao/pontificado-papa-francisco-2130426

 

"Obrigado, Papa Francisco, pela esperança que te animou e nos transmitiste.

1. O cardeal Jorge Mario Bergoglio, jesuíta argentino, foi eleito Papa a 13 de Março de 2013. Tinha 76 anos. Escolheu Francisco de Assis como inspiração para o seu pontificado.  A razão desta escolha não era o de reconduzir a Igreja à Idade Média. Mostrava, pelo contrário,  que Francisco de Assis era a figura mais actual do que ele desejava ser e fazer: viver a alegria do Evangelho,  fora dos esquemas clericais.  Queria fazer,  de uma Igreja em ruínas,uma  nova esperança de liberdade e de alegria.  O Evangelho, longe de asfixiar o poeta,  abria-lhe o mundo como um hino cósmico. Quis retomar o Concílio Vaticano II, convocado e iniciado por João XXIII, num clima de alegria e liberdade.  Veio,  depois,  um longo período chamado inverno da Igreja.  Ao ser eleito  Bispo de Roma  e  Papa da Igreja Católica, sabia que tinha de enfrentar não apenas o cuidado de todas as Igrejas,  mas uma situação depressiva que enchia os meios de comunicação:  escândalos na própria Cúria,  escândalos financeiros  e  o  horror dos horrores,  a praga da pedofilia.  Apresentou a sua  primeira  Exortação Apostólica,  A Alegria do Evangelho (2013), como esboço do seu programa. Ele próprio propôs algumas directrizes que pudessem encorajar e orientar, em toda a Igreja,  uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo,  com base na Lumen Gentium, do Vaticano II. Ao designar a sua primeira exortação A Alegria do Evangelho, estava a ser literalmente fiel à própria significação da palavra evangelho,  isto é,  boa notícia.  Nesta sua  primeira  Exortação Apostólica, tentou desfazer os equívocos da  expressão Reino de Deus.  É o tema  do   IV Capítulo  sobre a  Dimensão Social da Evangelização.

Não lhe pertencia oferecer uma análise detalhada e completa da realidade contemporânea,  mas animar todas as comunidades a desenvolverem uma capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos.  Não estamos a viver apenas uma época de mudanças, mas uma efectiva mudança de época. Assim como o mandamento “não matar” põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana,  assim também hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social.  Essa é uma economia que mata.  Hoje, tudo entra no jogo da lei do mais forte,  onde o poderoso engole o mais fraco [1]. Já foi dito que bastava um ano sem os gastos com armas para garantir alimentação e educação,  gratuitamente,  a todos os necessitados. O tema da alegria estará sempre presente na sua intervenção pastoral e, por isso,  desdobrar-se-á em vários documentos. Entre eles destaco: Laudato Si’ sobre a ecologia integral (2015); Amoris Laetitia (2016), Gaudete et exsultate (2018). Queria fazer, de uma Igreja em ruínas, uma nova esperança de liberdade e de alegria. O Evangelho, longe de asfixiar o poeta, abria-lhe o mundo como um hino cósmico. A Fraternidade Humana (2019) foi escrita e assinada pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb,  em Abu Dhabi.  Este é, talvez, o documento mais importante do diálogo inter-religioso,  que precedeu a encíclica  Fratelli tutti (2020), sobre a fraternidade e a amizade  social.  

Sublimitas et Miseria Hominis (2023),  no IV centenário do nascimento de Blaise Pascal, sobre o paradoxo do ser humano, na sua grandeza e na sua miséria.

2. O Papa Francisco realizou algumas das suas visitas às periferias (Lampedusa e Lesbos) que marcaram o rumo e o  espírito  do seu pontificado.  O Mediterrâneo,  transformado  num grande cemitério,  seria a sua  interpelação constante sobre as  migrações e as guerras. Desde o começo do seu pontificado, nas minhas crónicas dominicais do PÚBLICO,  procurei seguir as surpresas deste  Papa extraordinário. Confesso que  me mantive  cada vez mais entusiasmado com aquilo que o Papa realizou. Uma das heranças  mais vergonhosas  que recebeu  e a que mais tem contribuído para desfigurar a Igreja Católica é,  sem dúvida,  a longa história da pedofilia do clero com dimensões insuspeitáveis.  Talvez não se tenha dado conta,  desde o começo,  da vastidão desses crimes.  Acabou,  no entanto,  por desencadear o movimento das comissões não só para o levantamento dos abusos sexuais de menores,  mas também para a escuta e apoio da quantidade enorme de vítimas.  No entanto,  nada nem ninguém parecia que o poderia paralisar.  A reforma da Cúria, acompanhada de discursos estridentes,  foi um ponto que nunca esqueceu.  Insistiu que a Igreja não é para a Igreja,  mas para o mundo todo,  de crentes e  não crentes.  É uma Igreja de saída para todas as periferias,  não para fazer proselitismo,  mas para despertar a consciência humana e cristã adormecida.  Alertou,  nos discursos ao Corpo Diplomático,  que era o mundo todo, com todos os problemas das desigualdades,  das guerras,  dos refugiados,  da fome, não só a sua preocupação, mas sentia a urgência em despertar a consciência mundial,  pois é  numa era global  que existimos.  Sobre a  injustiça social e económica  é preciso continuar a ler e reler os seus discursos aos movimentos populares publicados sob o título Terra Casa Trabalho [2].

3. Entre as exortações apostólicas,  teve muita importância  a polémica em torno da  Amoris Laetitia,  que assumiu as questões mais problemáticas sobre a família. Manifestou um carinho especial pela Querida Amazónia que é um todo plurinacional interligado, um grande bioma  partilhado  por nove países. 

Dirigiu,  por isso,  esta exortação ao mundo inteiro.  Este grande texto sobre a  inculturação  e a  ecologia integral  foi também para muitos uma  grande frustração.  Do seu aprofundamento não resultaram as consequências práticas para a revisão dos ministérios eclesiais – um dos grandes sonhos do Papa Francisco – que continuam a excluir as mulheres. O grande obstáculo não é de ordem teológica.  A dificuldade  maior  tem poucos anos.  Vem da  carta apostólica  Ordinatio sacerdotalis,  deJoão Paulo II (1994),  onde a chamada ordenação sacerdotal  é reservada  exclusivamente  aos homens,  agora e para sempre. Não há dois baptismos,  dois cristianismos,  um de homens e outro de mulheres.  Perante uma declaração como a citada de João Paulo II,  é normal que o Papa Francisco sinta uma certa inibição  em rever todo esse processo,  embora não existam razões pastorais e teológicas que o impeçam. Tentou superar essa dificuldade com a proposta prática de uma  Igreja Sinodal,  que dá a palavra a todos,  mulheres e homens,  e  coloca,  nas mãos de todos,  o futuro da Igreja ao serviço da humanidade.  Uma Igreja de  “todos, todos, todos”!  O Papa Francisco escreveu um texto belíssimo sobre as bem-aventuranças do bispo, mas não convocou um sínodo apenas dos bispos. No contexto cultural e religioso  em que Jesus viveu,  não se pode esquecer o seu  comportamento subversivo  com as mulheres  e o  das mulheres com Jesus Cristo. 

Obrigado,  Papa Francisco,  pela esperança que te animou e nos transmitiste [3]."

 

[1] Cf. Evangelii Gaudium, n.º 51-53.

[2] Papa Francisco, Terra Casa Trabalho, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2018.

[3] Francisco, Esperança. A Autobiografia, Nascente, 2024

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