Frei Bento Domingues
O.P. (1934-)
O Pontificado do Papa
Francisco, Público Lx,
21/04/2025
www.publico.pt/2025/04/21/opiniao/opiniao/pontificado-papa-francisco-2130426
"Obrigado, Papa
Francisco, pela esperança que te animou e nos transmitiste.
1. O cardeal Jorge Mario Bergoglio, jesuíta
argentino, foi eleito Papa a 13 de Março de 2013. Tinha 76 anos. Escolheu
Francisco de Assis como inspiração para o seu pontificado. A razão desta
escolha não era o de reconduzir a Igreja à Idade Média.
Mostrava, pelo contrário, que Francisco de Assis era a figura mais actual
do que ele desejava ser e fazer: viver a alegria do Evangelho, fora dos
esquemas clericais. Queria fazer, de uma Igreja em ruínas,uma
nova esperança de liberdade e de alegria. O Evangelho, longe de asfixiar
o poeta, abria-lhe o mundo como um hino cósmico. Quis retomar o Concílio Vaticano II, convocado e iniciado
por João XXIII, num clima de alegria e liberdade. Veio,
depois, um longo período chamado inverno da Igreja. Ao ser
eleito Bispo de Roma e Papa da Igreja Católica, sabia que tinha de enfrentar não apenas o cuidado de todas
as Igrejas, mas uma situação depressiva que enchia os meios de
comunicação: escândalos na própria Cúria, escândalos
financeiros e o horror dos horrores, a praga da pedofilia. Apresentou a sua
primeira Exortação Apostólica, A Alegria do Evangelho (2013), como esboço do seu programa. Ele próprio
propôs algumas directrizes que pudessem encorajar e orientar, em toda a
Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo,
com base na Lumen Gentium, do Vaticano II. Ao designar a sua
primeira exortação A Alegria do Evangelho, estava a ser literalmente fiel à
própria significação da palavra evangelho, isto é, boa
notícia. Nesta sua primeira Exortação Apostólica, tentou
desfazer os equívocos da
expressão Reino de Deus. É o tema do IV Capítulo
sobre a Dimensão Social da Evangelização.
Não lhe pertencia
oferecer uma análise detalhada e completa da realidade contemporânea, mas
animar todas as comunidades a desenvolverem uma capacidade sempre vigilante de
estudar os sinais dos tempos. Não estamos a viver apenas uma época
de mudanças, mas uma efectiva mudança de época. Assim como o mandamento “não matar” põe um limite claro para assegurar
o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade
social. Essa é uma economia que mata. Hoje, tudo entra no jogo da
lei do mais forte,
onde o poderoso engole o mais fraco [1]. Já foi dito que
bastava um ano sem os gastos com armas para garantir alimentação e educação, gratuitamente, a todos os
necessitados. O tema da alegria estará sempre presente na sua intervenção pastoral e, por isso, desdobrar-se-á em
vários documentos. Entre eles destaco: Laudato Si’ sobre a ecologia
integral (2015); Amoris Laetitia (2016), Gaudete et
exsultate (2018). Queria fazer, de uma Igreja em ruínas, uma
nova esperança de liberdade e de alegria. O Evangelho, longe de asfixiar o
poeta, abria-lhe o mundo como um hino
cósmico. A Fraternidade Humana (2019) foi escrita e assinada
pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi. Este é, talvez, o
documento mais importante do diálogo inter-religioso, que precedeu a
encíclica Fratelli tutti (2020), sobre a
fraternidade e a amizade social.
Sublimitas et Miseria Hominis (2023), no IV centenário do nascimento de
Blaise Pascal, sobre o paradoxo do ser humano, na sua grandeza e na sua
miséria.
2. O Papa Francisco realizou algumas
das suas visitas às periferias (Lampedusa e Lesbos) que marcaram o rumo e o espírito do seu
pontificado. O Mediterrâneo, transformado num grande
cemitério, seria a sua interpelação constante sobre as migrações e as guerras. Desde o começo do seu
pontificado, nas minhas crónicas dominicais do PÚBLICO, procurei seguir as surpresas deste Papa
extraordinário. Confesso que me mantive cada vez mais entusiasmado com aquilo que o Papa
realizou. Uma das heranças mais vergonhosas que recebeu e a
que mais tem contribuído para
desfigurar a Igreja Católica é, sem dúvida, a longa história da
pedofilia do clero com dimensões insuspeitáveis. Talvez não se tenha dado
conta, desde o começo, da vastidão desses crimes.
Acabou, no entanto, por
desencadear o movimento das comissões não só para o levantamento dos abusos
sexuais de menores, mas também para a escuta e apoio da quantidade enorme
de vítimas. No entanto, nada nem ninguém parecia que o poderia paralisar.
A reforma da Cúria, acompanhada de discursos estridentes, foi um
ponto que nunca esqueceu. Insistiu
que a Igreja não é para a Igreja, mas para o mundo todo, de crentes
e não crentes. É uma Igreja de saída para todas as
periferias, não para fazer proselitismo, mas para despertar a
consciência humana e cristã adormecida.
Alertou, nos discursos ao Corpo Diplomático, que era o mundo todo,
com todos os problemas das desigualdades,
das guerras, dos refugiados, da fome, não só a sua preocupação, mas
sentia a urgência em despertar a consciência
mundial, pois é numa era global que existimos. Sobre
a injustiça social e económica é preciso continuar a ler
e reler os seus discursos aos movimentos populares publicados sob o
título Terra Casa Trabalho [2].
3. Entre as exortações apostólicas,
teve muita importância a polémica em torno da Amoris Laetitia,
que assumiu as questões mais
problemáticas sobre a família. Manifestou um carinho especial pela Querida
Amazónia que é um todo plurinacional
interligado, um grande bioma partilhado por nove países.
Dirigiu, por
isso, esta exortação ao mundo inteiro. Este grande texto sobre a inculturação e
a ecologia integral foi também para muitos uma grande frustração. Do seu
aprofundamento não resultaram as consequências práticas para a revisão dos
ministérios eclesiais – um dos grandes sonhos do Papa Francisco – que continuam
a excluir as mulheres. O grande obstáculo não é de ordem
teológica. A dificuldade maior tem poucos anos. Vem
da carta apostólica Ordinatio sacerdotalis,
deJoão Paulo II (1994), onde a chamada ordenação
sacerdotal é reservada exclusivamente aos homens, agora
e para sempre. Não há dois
baptismos, dois cristianismos, um de homens e outro de
mulheres. Perante uma declaração como a citada de João Paulo II, é
normal que o Papa Francisco sinta uma certa inibição em rever todo esse processo, embora
não existam razões pastorais e teológicas que o impeçam. Tentou superar essa
dificuldade com a proposta prática de
uma Igreja Sinodal, que dá a palavra a todos, mulheres e
homens, e coloca, nas mãos de todos, o futuro da Igreja
ao serviço da humanidade. Uma Igreja de “todos, todos,
todos”! O Papa Francisco escreveu um texto belíssimo sobre as
bem-aventuranças do bispo, mas não convocou um sínodo apenas dos bispos. No contexto cultural e religioso em que Jesus viveu, não se pode
esquecer o seu comportamento subversivo com as mulheres e
o das mulheres com Jesus Cristo.
Obrigado, Papa
Francisco, pela esperança que te animou e nos transmitiste [3]."
[1] Cf. Evangelii Gaudium, n.º 51-53.
[2] Papa Francisco, Terra Casa Trabalho, Temas e Debates, Círculo de Leitores,
2018.
[3] Francisco, Esperança. A Autobiografia, Nascente, 2024