PINHEIROS,
OLIVEIRAS E CASTANHEIROS
Com o ponto de situação que ora aqui faço, encerro este ciclo
de um livro que procurou fazer o retrato possível das gerações que passaram
pelo Seminário de Aldeia Nova no decurso dos seus trinta anos de existência
(1943-1973).
Como a maioria saberá, houve dois momentos para a sua
apresentação – uma, de caráter interno - no encontro anual em 5 de Outubro,
outra -de caráter externo - em 16 de Novembro.
Tendo este livro tido uma tiragem de 200 exemplares é com
alegria que informo que o mesmo se esgotou.
Tenho, por isso, alguns pedidos que não pude satisfazer e que
ficaram em espera, aproveitando para pedir a eventuais interessados na sua
aquisição que me contactem diretamente por forma a que, quando tiver um número
mínimo de encomendas, possa abalançar-me numa reedição, ainda que bastante
limitada.
Para
além das muitas e efusivas reações de
companheiros – o que me deixou naturalmente feliz e tranquilo por não ter
gorado as expetativas, apesar das inevitáveis limitações – tive ainda algumas apreciações
externas que aqui partilho convosco.
As duas
primeiras resumem o essencial do que foi dito pelos meus convidados para a
apresentação do livro. Na transcrição para o papel dos seus discursos, ative-me
ao mais essencial e procurei manter a vivacidade do seu discurso que – fui
testemunha disso -fugiu em muito ao
“papel” previamente preparado, fixando-se no improviso.
Os dois
outros comentários chegaram-me por via escrita, mas porque se tratam de pessoas
externas à nossa realidade, partilho os mesmos convosco.
Adiciono
ainda algumas fotos da apresentação externa.
SUSANA
PERALTA
(Especialista
em economia pública e economia política)
Talvez comece por explicar, como
toda a gente já falou aqui da sua história de vida muito mais interessante e
relacionados com o livro que a minha, a história que me trouxe aqui e que foi
aqui o Pedro Strecht que me enviou uma mensagem a dizer que tinha um amigo que
escreveu um livro sobre a vida no seminário e que gostava que eu apresentasse o
seu livro, e eu disse logo que sim (…) e quando falo com o Manuel ao telefone
disse-lhe que estava muito entusiasmada com esta possibilidade (…) porque, na
verdade, na minha vida sempre houve um seminário, que é o seminário do meu pai,
que está ali sentado (mas que não esteve neste seminário) e eu cresci desde pequenina com este seminário e com tudo
aquilo que ele trouxe de bem e de mal à vida do meu pai que também, tal como o
Manuel e todas as pessoas que agora aqui falaram (exceto os freis que nos
acolheram) saíram do seminário e lembro-me até de, quando era pequena, irmos lá
aos fins de semana aos encontros tal como os vossos e que fazem parte deste
livro – era o Seminário de Beja, onde o meu pai estudou alguns anos e que lhe
permitiu ser o único dos seus seis irmãos, sendo ele o irmão mais novo, o único que se licenciou e que de alguma forma
esse seminário também me permitiu chegar onde cheguei, com tudo o que isso
verdadeiramente tem de bom, porque eu tive a sorte de poder estudar, depois
também de poder ir para fora fazer o meu curso
e doutoramento e hoje em dia ser professora de uma faculdade com o nome
em inglês[1]
(risos…) e a verdade é que, de algum modo, isso também se deve ao seminário!
Bom, então o Manuel veio ter
comigo(…) e deixou-me este livro maravilhoso que eu li com muito interesse e
que ele diz que não é autobiográfico (…). Do Manuel ficamos a saber muito
pouco, temos esta inicial frase maravilhosa acerca da mãe do Manuel… é
engraçado porque o livro é completamente masculino porque os seminários eram
completamente masculinos, mas o primeiro parágrafo é para a mãe e, portanto, há
aqui uma personagem do sexo feminino que me parece que foi absolutamente
determinante, mas que apenas sugere…
E depois há também aqui uma coisa
incrível que é a frase, logo a seguir ao parágrafo da mãe, do Leonard Cohen
quando refere que “Há sempre uma fenda em todas as coisas…/É assim que a luz
entra! (…) E isso é muito interessante
porque acho que esta fenda a que o Manuel se refere tem muitos
significados na história da vida dele; mas também aqui no livro tem outra coisa
que eu também acho incrível que é a história de vida no seminário e que o
Manuel divide em três períodos embora eu vá considerar apenas dois momentos: um
mais austero, com regras muito mais estritas, de silêncio, muito pouco
centradas nos adolescentes que recebiam, e depois há um outro que corresponde a
uma fase de renovação e de alguma abertura, que coincide com a visita de
estrangeiros e que vêm trazer uma abertura e uma maneira de olhar diferente
para aquele espaço que é, sobretudo, para os jovens se formarem, de algum modo
um entendimento de que não vás ajudá-los a descobrir a vocação se não for com
maior liberdade. Mas mesmo na fase mais austera a fenda estava lá…e é engraçado
ver como no meio daquelas regras todas, de uma certa maneira profundamente
anti-infantis, anti-adolescentes e e anti-tanta coisa(…), havia “fendas”
(convívios, passeios) ainda que a fenda mais incrível seja esta amizade que vos
une…
Mas, afinal, o que foram estes
seminários? Estes seminários foram verdadeiras oportunidades destas pessoas se
formarem porque, de facto, não ofereciam oportunidades às pessoas para fazerem
a sua formação após o ensino primário. E não deixa de se constatar no livro a
percentagem baixíssima das pessoas que ao longo das várias décadas passaram
pelo seminário que, efetivamente, acabaram por seguir a vida religiosa. Mas
isso também mostra – eu sei isso através da história do meu pai – que as
pessoas iam muitas vezes para o seminário com uma vocação que em todo o caso
entendiam verdadeira (embora eu seja verdadeiramente incompetente para falar de
vocações) e, por isso, não quer dizer que as pessoas apenas se aproveitassem…
aliás, o Manuel tem aqui uma parte muito interessante onde se discute o próprio
processo de seleção e que tinha em conta não só as competências escolares e
cognitivas dos jovens, mas também procuravam perceber a natureza da vocação
porque, de facto, era uma escola para formar pessoas para a vida religiosa e
custava dinheiro (aliás, há no livro também
toda uma parte acerca das propinas que era preciso pagar, mas, na
prática, o preço era verdadeiramente
insignificante na maioria dos casos.
Mas também acho importante e
interessante esta capacidade das pessoas que, depois de já estarem numa fase da
vida que já têm tempo para isso, irem aos arquivos, investigar, descobrir os
fios destas meadas que fazem parte deste vosso passado recente, tão recente (…)
e que nós, em Portugal, temos tanta vontade em esquecer este passado que foi
ontem, e que é um passado de grandes dificuldades materiais e emocionais (…) e,
deste ponto de vista é fantástico!
De facto, o progresso deste país
neste século é verdadeiramente fora de série, mas é sempre bom não nos
esquecermos de que vimos daqui (…)!
Eu trazia aqui uns números,
embora fique sempre com uma síndroma de impostora ao vir a esta plateia contar
como era a vida neste país antes de eu nascer…
Acho, no entanto, que vale a pena
lembrar alguns números…
No entanto, não havia naquela
altura indicadores como os que utilizamos hoje como, por exemplo, a pobreza, em
geral e a pobreza infantil, em particular (quem vive em casas mal aquecidas,
quem tem limitações no consumo de calorias, etc.). Há, ainda assim, alguns indicadores, uns mais
fidedignos que outros porque já eram recolhidos de forma sistemática, como, por
exemplo, os dados da mortalidade infantil. Assim, por exemplo, em 1960 a
mortalidade infantil em Portugal era de 77,5 crianças por mil antes de chegarem
ao primeiro ano de vida (em 2023 esta taxa é de 2,6).
E não deixa de ser interessante
ver que a viragem que o Manuel descreve no seu livro de um ambiente de maior
abertura e liberdade coincida, na verdade, com variáveis económicas. A
mortalidade infantil começou, de facto, a baixar em meados da década de
sessenta e quando olhamos para os dados da nutrição, nós vemos que, desde o
final dos anos quarenta até ao início da década de setenta, a ingestão de
trigo, por exemplo, aumentou em 50% per capita, a ingestão de arroz aumentou
também em mais de 50%, bem como o consumo de ovos que são um bom indicador da
ingestão de proteínas. Assim, segundo os dados do INE, em 1946/49 a ingestão de
ovos era de 1,6/ano, per capita mas, já em 1990, esse número tinha-se
multiplicado por 6, passando a 6,6 ovos per capita (…).
Já agora só mais duas dimensões:
A dimensão da habitação – mesmo
em 1970, já após uma década de crescimento económico que foi substancial
durante o Estado Novo – é preciso dizer – 29,4% das famílias viviam em
alojamentos sem condições, insalubres (sem água, luz ou instalações sanitárias)
e obviamente com grandes variações regionais – e isso se vê também bastantes
vezes com a análise do Manuel, sendo que essa variação varia de 17,4% no
distrito de Santarém a 45,3% em Vila Real o que tem alguma correspondência com
as regiões de Trás-os-Montes e do interior muitíssimo representadas!
A dimensão da formação - (…)
tenho aqui uma citação de um deputado nos anos quarenta na Assembleia Nacional
que, falando do trabalho infantil, explica que a falta de jovens no ensino
secundário se deve, de facto, o número de jovens que estão a trabalhar. E eu
tenho aqui estimativas para os anos quarenta que nos dizem que havia cerca de
600.000 jovens do sexo masculino e até aos 19 anos a trabalhar e cerca de
370.000 jovens do sexo feminino. Diz então o referido deputado: “Quanto ao
trabalho é sobretudo na família que ele melhor se ensina, ajudando as mães nas
canseiras domésticas, nas lides de casa e, para os mais novos, tratamento de
animais e trabalhos de campo mais simples. É aí que se inicia o trabalho
infantil, o trabalho sério, porque o trabalho de escola é sempre uma
brincadeira à vista deste. O trabalho doméstico e familiar, pela sua seriedade,
desenvolve também o sentido das responsabilidades, o que não sucede nem pode
suceder no trabalho nas escolas infantis. A formação da personalidade infantil
desenvolve-se na luta, com as dificuldades, vencendo o imprevisto, fazendo
trabalhar todas as forças físicas e morais do nosso ser! A escola é o contrário
disto, é como a caserna, despersonalizante! Por isso, as condições de família
são muito superiores às da escola para educar!”
Enfim, eu acho que este livro e
também os exemplos de vida e os percursos destas pessoas que, depois, também
muitas delas se licenciaram ou fizeram outras coisas incríveis, incluindo um
deles, que - segundo aqui foi dito – se encontra, por exemplo, a celebrar hoje a
luta num sindicato, e todos os percursos de vida que estão aqui mostram que a
escola é muito mais do que isso…
E, para terminar, penso que
também é importante recordar que a Igreja Católica, com todos os seus defeitos
e limitações, não deixou também de ser uma grande força de formação neste país!
Obrigado!
PEDRO
STRECHT
(Pedopsiquiatra)
Vou começar por agradecer o
convite do Manuel por estar aqui hoje e também aos Dominicanos por nos terem
recebido aqui esta tarde (…) Dominicanos que conheço muito bem porque cada um
dos meus três filhos também passaram cinco anos numa escola dominicana – Escola
das Irmãs Irlandesas de Lisboa – e receberam do Fr. José Nunes a primeira
comunhão e a profissão de fé (…) Portanto, tenho também esta pequenina ligação
à Família Dominicana (…).
Este livro é uma grande viagem
das nossas vidas – como disse aqui um amigo e companheiro do Manuel - do nosso
país e da evolução de cada um de nós que, de facto, nos leva a ler com imenso
gosto e que é uma delícia (…) e que para
mim não deixa de, por uma certa formação profissional, ao ouvir estas histórias,
estar sempre a formar na minha cabeça imagens de cada um de vocês com 10 anos,
12, etc..!
E, como disse a Susana, se nós
olharmos para trás e virmos a realidade social, política, educativa e económica
do nosso país, se calhar para quase todos nós há algures um seminário nas
nossas vidas familiares, algures uma colocação em internato que transportamos
em cada um de nós, porque é aí que as nossas raízes também estão…!
Foi em Outubro de 1999 que eu,
ainda jovem médico pedopsiquiatra, comecei a trabalhar no Centro Educativo
Padre António de Oliveira, em Caxias, onde o Manuel era o diretor, paredes
meias com a Prisão de Caxias e, por isso, também temos essa partilha monástica
porque o mesmo se situava no antigo Convento da Cartuxa (…)!
E foi assim que nos conhecemos
nesse instituto com o nome de Padre António de Oliveira (poderia ter sido
noutro qualquer…) mas que bem simboliza a enorme intersecção, sobretudo no
Portugal do S.XX, da Igreja e do Estado Novo, que caminharam muitas vezes lado
a lado e que cada um, à sua maneira, deixou marcas imensas na estruturação
assistencial e caritativa da infância em
Portugal.
E o que não vem por um lado vem
por outro, num atitude que eu diria, por um lado, cuidadora, mas, por outro
lado, reguladora do bem-estar, porque havia normas explícitas – até na
sociedade em geral (…) e obviamente que sabíamos que essa formação era
subordinada ao lema “Deus, Pátria e Família”, haverá ainda, claro, a tradição
da moral e dos bons costumes(…)
Pinheiros, oliveiras e
castanheiros – Todos eles nos trazem memórias sobre as caraterísticas
destas árvores e o seu significado e as ligações que vamos fazendo como
colegas, amigos e, no vosso caso, unidos por aquilo que foram as vossas
experiências de aprendizagem, relação, etc., em tudo o que significa o mundo
extrafamiliar. Mesmo para nós, que sempre vivemos com os nossos pais em casa e
somos de uma outra geração, conhecemo-nos e conhecemos os outros em tudo aquilo
que as crianças da escola, a escola e as vivências extrafamiliares nos foram
trazendo de uma forma ou outra. Mas especialmente com muita mais força em quem,
desenraizados da sua origem, viveram o seu crescimento, ensino e aprendizagem
em espaços como o “casarão” (…) um lugar que era verdadeiramente lugares.
Há muitos anos atrás, um autor
belga (Marc…) falou do “não-lugar”, justamente porque hoje em dia nós vivemos
em muitos “não-lugares”, e realçando o facto de que os verdadeiros lugares,
como estes casarões que vocês habitaram e transformaram em casas, são espaços
simultaneamente de identidade e de relação com história. E nós hoje movemo-nos
em espaços sem identidade, onde não há grande relação e que, provavelmente, não
vão deixar uma grande história.
Este livro desenvolve-se – e é
isso que eu acho brutal – como uma história, uma narrativa entre vós e, por
isso, ele também se poderia chamar “Laços com nós” que nós desatamos para criar
laços, porque é isto que sentimos em todos vocês, como uma grande família (…)!Depois,
este livro não é apenas uma reposição de memórias, é também um retrato
sociológico explícito do Portugal pós-guerra, desde a interioridade, a pobreza,
a desigualdade, o analfabetismo, o forte pendor da Igreja sobre todas as
populações, enquanto ascensor social, mas também como controlador social. E há,
de, facto, um outro retrato que hoje em dia já não temos e que são muitas
crianças em famílias numerosas, pais trabalhadores rurais ou em serviços
básicos que hoje em dia chamamos cada vez mais verdadeiros ofícios e
verdadeiras artes e mais cuidadores de um espaço-casa onde, de facto, alguns
dos rapazes – como constatamos aqui – e só aqui apenas, se calhar, os mais
dotados ou mais bafejados pela sorte (…) é que poderiam ir estudar para o seminário
e foi assim que conseguiram dar um passo muito grande nas suas vidas pessoais,
profissionais e, depois, familiares.
Nós sabemos muito bem – e aparece
aqui referido em todas estas pequeninas histórias- que, apesar de tudo e
independentemente das condições, estas crianças referem-nos a sua base segura,
o seu espaço, a sua casa de família, o pai que sendo austero não deixa de ser
pai.
E havia também uma coisa que eu
acho que é muito importante e se tem perdido um pouco e que era, apesar de
tudo, a capacidade de nós próprios, enquanto pais e pessoas, confiar nos outros
(…) – O pai chegou ali (Caxarias), viu aquela pessoa vestida de branco e
confiou! E alguém podia dizer, assim como me dizia há dias uma criança: “-Ah,
mas ele pode ser pedófilo”, ao que eu disse: “- Pode, mas vamos pensar
entre o possível e o provável: 99,4% das pessoas são normais”, portanto,
vamos lá ter um bocadinho esta base de confiança que hoje em dia parece que nós
perdemos, parece que só nós próprios sabemos fazer e não podemos passar esse
testemunho a outros em que também podemos confiar!
Pinheiros, oliveiras e
castanheiros - Todos nos falam da distância e da ausência, do que era
partir e todos também nos falam do desejo de um futuro versus a estagnação
presente e o futuro que, como alguém diz aqui no texto, é bem simbolizado pelo
próprio nome do local – Aldeia Nova – como se qualquer de novo pudesse
acontecer. Aldeia-Nova/nova aldeia em que todos se despiam de um passado
recente e todos se davam a unir perante um desapego inicial comum que inclui a
dor da perda, mas que prometia um novo crescimento individual, assente na ideia
coletiva do grupo de pertença e de partilha – e julgo que é isto que ainda
transparece hoje em dia nas vossas vidas!
E onde havia, com certeza, a
construção de novas raízes e também o desenvolvimento das capacidades, das
competências que muitos tinham, mas que, de outro modo, teriam ficado
estagnadas, mantendo-se ciclos negativos de pobreza e desamparo (…)
Porque se foi também esta parte –
digo eu – desta geração imensa que viveu os desígnios do Estado Novo e que
também viu partir e morrer muitos seus para a guerra (…), também foi esta mesma
geração – a vossa – que mais tarde teve a necessária força de mudar e a quem
nós devemos a construção e consolidação da liberdade, em que hoje vivemos a
LUCIANO
MARMELADA
(Psiquiatra)
Com
uma escrita clara que não rejeita uma toada poética, filigranada por uma subtil
espiritualidade, não sendo propriamente autobiográfico, o autor não se esconde
na trama geracional que convoca.
O
título do livro, remete-nos para a ruralidade de um Portugal e consequente subdesenvolvimento
do “início da década de 50... o Portugal da oliveira, do pinheiro e do
castanheiro” embalado “nas pancadas lentas e compassadas do martelo a
esmagar o bronze do sino da velha torre da igreja”.
A
narrativa leva-nos para territórios da “Ordem dos Pregadores (Dominicanos) em
Portugal e no Mundo” e centra-se no Seminário Apostólico Dominicano da Aldeia
Nova/Olival, Ourém, pedra angular do livro e da história da Renovação da Ordem
em Portugal, que o autor enquadra com dados da sua investigação (ciclo de
crescimento e consolidação 1943/1968, desenvolvimento e mudança 1960/1968,
decreto conciliar, ciclo de transformação e novo modelo 1973).
Súbito,
da narrativa, um brado: ”Não te esqueças Armando. Nós fazemos um grande
sacrifício para te ter a estudar, ainda por cima tão longe. Estuda, filho”!
Mais do que constituir frase tutelar que dá corpo ao texto, mais do que o
lamento de uma mãe na contingência de ver o filho condenado a vender copos de
vinho na taberna da aldeia, é o grito de revolta de alguém a tentar trocar as
voltas ao destino.
O
livro é intercalado por eloquentes testemunhos “daquela geração” de horizontes
limitados em que o acesso ao seminário e a uma educação religiosa constituíam
uma possível aposta num futuro melhor....“a pobreza...a possibilidade de
estudar...o quantos fomos...de que tempos somos...com que idades entramos...de
onde viemos...o papel dos párocos...porque fomos...que família era a
nossa...como se entrava...a questão das vocações...o dia a dia no seminário...as
horas difíceis...os que ficaram...os custos das mensalidades e a questão dos
enxovais...quem ensina o quê, para quem e para quê?” são vivências que
perpassam nos textos disponibilizados.
O
autor reflete certas idiossincrasias institucionais da altura, como os
regulamentos que regiam “a relação com os colegas” que, aos olhos de hoje,
denotam uma visão deturpada da sexualidade dos adolescentes e na “relação com
os superiores” que denunciavam visões de cariz teocrático (“os superiores são
legítimos representantes de Deus, encarregados duma missão tão árdua, como
benéfica”).
O
livro não deixa de alimentar o nosso “voyeurismo” sobre o que os muros do
seminário “escondiam”. Sobre este mistério, a minha geração retinha uma vaga
memória de uma “Manhã submersa” de Virgílio Ferreira, ou mesmo da novela “Marcelino,
Pão e Vinho” da nossa meninice, mais interessada no que se “passava para além
dos muros dos asilos psiquiátricos”,analisados numa perspetiva freudomarxista.
Fica clara a contribuição da Ordem dos Dominicanos para a renovação do ensino religioso em Portugal e, consequentemente, a sua contribuição para a modernização do pensamento português. Os testemunhos recolhidos, refletem lapidarmente as vivências institucionais e pós institucionais dos protagonistas, tenham ou não seguido o múnus sacerdotal.
ONÉSIMO
TEOTÓNIO ALMEIDA
(Professor
Catedrático da universidade de Brown -USA, jubilado)
Hoje
ia referir mais um livro recebido de oferta, mas decidi alargar-me num
comentário.
A
cultura portuguesa tem um capítulo de auto-censura que merecia ser estudado a
sério: é o do papel dos seminários e conventos na formação de tanta gente que,
tendo deixado essas casas de formação, desempenhou papéis relevantes na vida
nacional (em todas as vertentes do espetro político; mas, para o caso, isso é
irrelevante). Por um lado, temos gente como Salazar e António Ventura e, por
outro, Miguel Torga, Vergílio Ferreira e José Mattoso, a encabeçar uma longa
lista.
Esse
estudo está por fazer. Não serei eu levá-lo a cabo pois não tenho já idade para
isso, muito embora ainda pense em ir avante com a velhíssima ideia de escrever
sobre a minha experiência no Seminário de Angra. Pelo menos para contar
histórias.
(…)
Esta
nota foi também impulsionada pela leitura (confesso que não página a página,
todavia concentrei-me no essencial) de um notável livro que bem poderia ser uma
tese de doutoramento: Pinheiros, Oliveiras e Castanheiros, um estudo
histórico-sociológico do Seminário da Ordem Dominicana, da autoria de Manuel
Branco Mendes (Espaço Ulmeiro, 2024). Graças ao Francisco Soares Torres
(recebedor destas notas), que por lá andou (conhecemo-nos em 1970), possuo um
exemplar do livro que recomendo vivamente (foto #1, da capa em anexo). Trata-se
de um trabalho altamente informativo e ricamente ilustrado.
(…)