- Não te esqueças Armando. Nós fazemos um grande sacrifício para te ter a estudar, ainda por cima tão longe. Estuda, filho.
Eram as últimas recomendações antes da carroça encostar à porta da estação da CP, Moncarapacho-Fuseta. Ainda ninguém me explicou porque só neste local a palavra Fuzeta surge com “s”. Após tantos anos, parece-me que às pessoas tanto se lhes dá. Sendo ainda por cima um território adversário, será que é imposição de Moncarapacho? “Aceitamos contrariados a junção do nome Fuzeta, mas fica em grafia incorrecta para demonstrar o nosso desagrado”. Digo eu. Que há coisas que nunca se dizem.
O meu pai prende a mula à argola postada na parede da estação para o efeito, e a família apeia-se arrastadamente, a mãe lacrimejando, o pai com expressão solene e o filho com a vocação determinada no olhar.
Passam cinco minutos das onze da noite quando a máquina a vapor entra imponente na estação a arrastar as rodas de ferro que guincham intensamente uma dor de tortura.
Vou acenando um adeus às silhuetas paternas diluídas pelo fumo da locomotiva e pela penumbra da noite mal iluminada. O intenso cheiro a carvão abafa a brisa marítima que diariamente me entra pelas narinas ao passar junto dos locais que são meus, conquistados numa infância bronzeada de ria e mar. Só nos curtos períodos de férias voltaria aos jogos de futebol nos campos deixados livres pelas marés mortas, à pesca aos robalinhos, à descoberta dos ninhos escondidos nos sapais, a tantas brincadeiras intervaladas com refrescantes mergulhos na ria Formosa.
O “Correio”- assim se chamava o ronceiro comboio - deambularia toda a noite pelo Algarve e Alentejo, acorrendo a todas as estações e apeadeiros na missão de recolha de correspondência e encomendas.
A maioria dos passageiros era constituída por militares. Comportavam-se como se estivessem em território conquistado, livres das regras militares e das normas sociais que na família e na comunidade não podem ser infringidas. Não deixava de os intrigar a presença dum “estorninho” de negro vestido aos dez anos de idade. As perguntas sucediam-se mas não dissipavam a estranheza. Daí não ser de todo surpreendente, que no sono do “objecto estranho” surgissem tropelias como derramar-lhe aguardente pela goelas abaixo, aproveitando o facto de o desvio do ceptro nasal o obrigar a respirar pela boca. De imediato surgiam muitas vozes a reclamar contra a malvadez. Mas o mal estava feito, não obstante o “estorninho” conseguir sair da aflição embora a custo de muitas lágrimas e cuspidelas envoltas em ataques de tosse.
Porquê encadernar assim um gaiato para uma viajem de cerca de 500 quilómetros em transportes públicos? Para ser posto à prova? Para dar testemunho da sua vocação?
Quando os primeiros alvores da madrugada começavam a apontar no horizonte, o casario do Barreiro envolvia a carruagem e prestes o comboio se deteria a suar e a resfolegar, fumegando de cabo a raso como um cavalo cansado. Seriam seis da manhã, mais coisa menos coisa, porque na época os horários eram vagamente indicativos.
Era a altura de arrastar a pesada mala até barco que fazia a travessia do Tejo. Num quadro impressionista começavam divisar-se progressivamente as formas, as cores e os pormenores da cidade à medida que em sintonia a luz da manhã e a aproximação de Lisboa cresciam. O mar estendia o seu braço pelo estuário do Tejo acariciando-me com a brisa fresca num derradeiro adeus.
Chegado à estação Sul-Sueste bem junto à Praça do Comércio, não havia permissão para me demorar a olhar o Cais das Colunas ou verificar qual era a pata direita da frente do cavalo de D. José. Tinha que me pôr de imediato a caminho, carregando a mala do enxoval até S. Apolónia. O enxoval do pobre era ainda assim desproporcionado no peso para as forças duma criança. Aquela milha representava uma maratona, porque chegava tão exausto como um atleta. A distância não me cansaria, não fora o carrego da mala e das preocupações que os adultos me impunham: “não fales com ninguém”, “não aceites boleia de ninguém”, “ não compres nada a ninguém”, “não vás para casa de ninguém”, “não pares no caminho”, “não abandones a mala nem por um segundo”, não assim, não assado.
Que alívio quando me sentava no banco de segunda classe do comboio para o norte. È bem verdade que para norte é que é o caminho. Para lá me guiava não a estrela, mas o facho do cão de S. Domingos. Seriam mais algumas horas, até ouvir o grito “Caxarias”, que tinha a função de despertador e de anúncio publicitário duma terra por descobrir.
E se o comboio chegou atrasado? E se os do norte já tivessem chegado todos e a carrinha “Pão de forma “ tivesse abalado com a carga completa?
Menino só tens uma solução. Pensões, não há em Caxarias. E se as houvera não terias como pagar. Portanto, mais uma vez carrega a mala do enxoval e põe-te a caminho. Recordo-me de uma única vez em que isso me sucedeu. Não sei ainda hoje quantos quilómetros distam de Caxarias a Aldeia Nova, nem quanto tempo demorei. Sei que cheguei ao destino. Mas podia ter ficado pelo caminho, morto de susto. Porquê? perguntais.
Um dia vos contarei.
Armando José
Na Beira como no Algarve, o combóio era o mesmo, o medo era o mesmo e a mesma aventura. Tu na "Fuseta" eu em Vila Franca das Naves (Trancoso). O dia também foi o mesmo. Suponho que 16 de Outubro de 1955.
ResponderEliminarUm abraço
Nelson
Armando José? não me cai bem ! Permites que continue a chamar-te Alexandrino? Depois de um domingo bem repleto, (os filhos que foram correr a semi-maratona a Lisboa, com mais 20 colegas, abandonaram aquí em casa, tres netos)já bem tarde, ligo o compotador e deparo com este texto magnífico. São sempre assim os textos do Alexandrino. Lí-o uma primeira vez, com sofreguidão (que linda palavra – encontrei-a agora mesmo, num canto da mnha memória remota) relí-o com calma pensando na minha primeira viagem. As recomendações foram identicas. A anciedade, o medo do que não conheciamos, mas desejavamos eram também os mesmos. Vindos do sul ou do norte convergíamos para um mesmo ponto, Aldeia Nova! Aldeia desconhecida para o comum dos mortais, mas que constituío para nós, uma parte importante de nossas vidas. Esse lugar e esse tempo são o cimento que nos mentém unidos e solidários. Obrigado Alexandrino por este momento “de pur bonheur” que passei a ler-te e a recordar. Um abraço. Fernando.
ResponderEliminarArmando José? não me cai bem ! Permites que continue a chamar-te Alexandrino? Depois de um domingo bem repleto, (os filhos que foram correr a semi-maratona a Lisboa, com mais 20 colegas, abandonaram aqui em casa, três netos)já bem tarde, ligo o computador e deparo com este texto magnífico. São sempre assim os textos do Alexandrino. Li-o uma primeira vez, com sofreguidão (que linda palavra – encontrei-a agora mesmo, num canto da minha memória remota) reli-o com calma pensando na minha primeira viagem. As recomendações foram idênticas. A ansiedade, o medo do que não conhecíamos, mas desejávamos eram também os mesmos. Vindos do sul ou do norte convergíamos para um mesmo ponto, Aldeia Nova! Aldeia desconhecida para o comum dos mortais, mas que constituíu para nós, uma parte importante de nossas vidas. Esse lugar e esse tempo são o cimento que nos mantém unidos e solidários. Obrigado Alexandrino por este momento “de pur bonheur” que passei a ler-te e a recordar. Um abraço. Fernando.
ResponderEliminarÉ triste verificar que não há sequer uns laivos, umas résteas de
ResponderEliminarmanifestação religiosa na tua viagem que é somente turistica. Onde está a oração. Talvez por isso foste um dos chamados e não escolhidos.
António da Purificação
Só para ler textos como o do Alexandrino vale a pena manter este meio de comunicação entre os que um dia desembarcaram em Caxarias, rumo a Aldeia Nova, por entre aqueles pinhais, plantados um dia pelo rei agricultor. Custou a primeira vez, mas depois aconteceu comigo que ao cabo do primeiro mês de férias já tinha saudades.
ResponderEliminarTudo como nos meus tempos. Só mudou o meio de transporte das malas, que o nosso transporte fez-se sempre à pata. As malas iam empilhadas numa carroça puxada por uma mula muito bravia, conduzida pelo fr. Reginaldo.
Continua a deliciar-nos com os teus textos, Alexandrino.
Um abraço. Toninho
Ora viva colega da Purificação.
ResponderEliminarLembrasse-me eu que tu lerias estas linhas e teria desde logo dado uma explicação prévia para o facto de não ter rezado o rosário na viajem, já que tempo me sobrava. Tu sabes que o objectivo última dessa viajem era "estudar para padre", o que tem implícito aprender a rezar. Ora seria arrogância da minha parte pretender praticar um determinado exercício ainda antes de receber os princípios teóricos e exercitado a prática através dum estágio adequado. Aceitaria o reparo se surgisse a verberar essa falha num estadio avançado da carreira. Não na fase de simples candidato a.
Armando
Como diz o Nelson, “o comboio era o mesmo e o medo era o mesmo”, por todo o lado, de Norte a Sul. As condições de vida da gente e o desmame das suas crianças atingiam limites de crueldade. Descrições destas, a serem verdadeiras nos tempos de hoje, chamariam a atenção dos serviços sociais ou da justiça. Enfim, já lá vão, à vontadinha, 50 anos ou mais…
ResponderEliminarHistórias assim bem contadas, são sempre arrepiantes e o nosso blogue transmite-nos algumas principalmente dos seus começos. Delas ressalta sempre a bonomia do resultado final após muitas canseiras e aventuras. Valeu a pena? Muitos dirão que sim e o espírito de gratidão leva-me, por exemplo, a aceitar e realçar a intervenção do Manuel Guerra, no último encontro.
Das nossas viagens, às dezenas, para além do episódio caricato do vinho de missa que o Alexandrino provou, lembro-me também de pormenores que ainda hoje me fazem rir à gargalhada. Nem tudo era mau e, por mais que me purifique nas águas onde nado, nunca mais me abandona este sabor a ferro, fumo e hulha queimada de outrora.
Com idades tão jovens, cada distância à nossa casa era uma provação e a minha também se media por muitas horas de caminho, mas nada que se comparasse com a de alguns que vieram da Madeira e dos Açores. Onde andam esses?
Um abraço.
Ferraz
Um texto a não perder. Porque não escreve um livro?
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